Um dia acordou como se soubesse que uma outra vida começara. Colocou uma música, foi até o quintal e olhou pro céu. Sentia algo que não sabia dizer, mas intuia que alguma mudança estava porvir. Algo radical talvez, estranho, novo, uma quebra nos seus arranjos afetivos mais conhecidos. Sentiu saudades dessa vida desconhecida. A música embalava essa sensação, a provocava também, ela não sabia, só sentia. Ela nunca tinha visto de verdade os olhos dele. Olhou para as fotos, olhou de novo e pensou: Por que eu não enxerguei esses olhos? olhos caídos, quietos, angustiados, que não a olhavam de verdade, que não pareciam pertencer a nenhum instante. Foi quando ela começou a se questionar sobre uma possível cegueira. Ela teve medo de ter passado muito tempo cega. Sentiu um pouco de vergonha da sua cegueira, como se fosse boba de ter pensado ter visto tanta coisa. Os olhos dele a intrigavam, faziam perguntas, traziam respostas, mas os olhos dele não eram como os olhos de um gato. O olhar do gato está sempre presente no acontecimento, ele é, existe no aqui e agora do momento em que nos olhamos. O olhar do gato nos olha, pensava ela. Os dele não, os dele pareciam não vê-la, só que não era nada óbvio, era tudo mais complexo. Um dia ela lembrou da infância, outro da adolescência e outro de alguns encontros amorosos que teve já nos seus 20 e poucos anos. Ela despertou o fantasma que dormia quieto nas profundezas da sua alma. Fazia tempo que o fantasma dormia e da sua presença ela só escutava seus roncos e ruídos, essenciais para ela manter seu estado de atenção. Será que a cegueira dela foi tão intensa que perturbou seus outros sentidos? Ela esqueceu que o fantasma dormia, já nem o ouvia mais, por isso tomou um susto muito intenso quando ele despertou. O medo voltou a caminhar com ela. O fantasma despertou outros e estes chegaram em comitiva até ela. Ela decidiu correr. Bordou suas roupas de dança de forma tão intensa, atenta, séria, com muita dificuldade e esperança, que parecia bordar o manto que vestiria a deusa. Bordou como se preparasse o enxoval da partida, da fuga. Quando terminou ela respirou, pediu ajuda ao mundo desconhecido, mas sem nenhuma intimidade, meio sem jeito, sem saber como pedir, o que falar, pra onde olhar. Depois sentou na esquina da rua, ansiosa, pois sabia que por ali passavam caravanas ciganas que transitavam pela vida ora por desejo, ora por expulsão. Construiam seus territórios sob estas condições: desejo e expulsão. A caravana não passava. A lembrança dos olhos dele a atormentava, ela precisava fugir, pois um dos fantasmas despertos a fazia imaginar que tivesse culpa por aquele olhar. Ficou sentada ali, perdida, o choro não aparecia, era mais susto que lágrima. O susto fazia com que ela permanecesse em alerta, pronta para o que desse e viesse. O choro, naquele momento, a juntaria aos fantasmas. Nessa hora ela lembrou da sua bicicleta e pensou em buscá-la para ir de encontro as caravanas, pensou em encurtar o tempo. Só pensava em fugir dos olhos dele. Pegou silenciosamente sua bicicleta, colocou sua roupa bordada na cesta e foi, pedalando, pedalou, pedalou e quando estava quase esgotada encontrou um ser misterioso. Ela o viu de longe, freou rapidamente, sua visão ficou turva, teve dificuldade pra enxergar se era alguém conhecido ou desconhecido. Escutou um assovio, uma música talvez. Isso fez com que ela parasse de respirar ofegante e tomasse coragem de chegar mais perto. Colocou a bicicleta num canto e foi chegando perto, bem perto. Ele a chamou pelo nome, pegou na mão dela, sorriu, disse que fazia tempo que a esperava. Quase não acreditou. Os olhos dele eram tão sinceros, doces, apaixonados, envolventes. Naquele momento ela esqueceu de tudo e só aquele momento existia em sua vida, aquele encontro, aquele mistério, aquele olhar que a fazia ter a sensação de que não precisaria mais fugir. A boca, as mãos, as pernas, o quadril, tudo tremia, suavemente, mas tremia, uma prazeroza tremedeira que tomou conta de seu corpo. O olhar dele, o jeito que ele pegou em sua mão, o modo como a abraçou. Fazia tanto tempo que ela não sentia algo assim. Revisitou a leveza, a paixão, a sedução, o cuidado e o carinho. Aquela noite foi de olhares longos, sensações imensas, quase infinitas. A manhã veio, ele se foi, ficou ela e a bicicleta. O dia amanheceu e sentiu fome, pensou em voltar pra casa, mas ela estava longe, longe demais pra voltar. O sol iluminava seu rosto, sentiu-se bonita novamente. Teve vontade de rir, de rir de si mesma, do que percebeu ser capaz. Deixou a bicicleta ali mesmo, prefiriu ir andando, sentindo cada pedacinho do seu corpo, aprendendo a curar a cegueira com a respiração, com o vento no rosto, com o som dos pássaros, com o sabor daquela noite na sua boca. Continuou andando...